Uma das coisas mais divertidas que assisti nos últimos tempos foi Lupin, série da Netflix inspirada num famoso personagem da literatura francesa. Agora vocês imaginam a minha alegria quando, pouco depois de ver a primeira temporada, fui convidado para um trampo para adaptar o livro original para quadrinhos? Foi uma delícia me debruçar sobre o personagem e hoje eu queria contar um pouquinho para vocês sobre isso. O texto abaixo é uma versão resumida (bem resumida mesmo) da proposta que a editora pediu antes que eu iniciasse o roteiro. Vamos tentar desvendar quem é Arsène Lupin?
Arsène Lupin, o ladrão de casaca foi o romance que reuniu as primeiras aventuras (em nove contos) de Arsène Lupin, famoso ladrão ficcional francês. No sentido de adaptar o máximo possível da obra original, costuramos os nove contos em uma história só na nossa história em quadrinhos. Dentro dessa estrutura, cinco contos compõe o esqueleto da obra: a tríade da prisão de Lupin (“A prisão de Arsène Lupin”, “Arsène Lupin na prisão” e “A fuga de Arsène Lupin”), que apresentam uma continuidade entre si; “O colar da rainha”, um conto de origem; e “Herlock Sholmes chega tarde demais”, que não só narra o encontro de Lupin com uma versão do detetive inglês, como também dá certa continuidade a tríade da prisão. As outras quatro histórias são contadas por Lupin, com mais ou menos detalhes, ao seu maior perseguidor, o inspetor Ganimard, em dois momentos da trama.
A maior parte das aventuras de Lupin coincide com a Belle Époque francesa, que durou de 1871 a 1914. No primeiro livro, a maioria das histórias acontece nos primeiros anos do século XX, exceto “O colar da Rainha'', que se passa no final do século XIX. A Belle Époque foi um período de grande otimismo e paz desfrutado pelas potências ocidentais, sobretudo as europeias, até o início da I Guerra Mundial. O ponto marcante desta época foi o estilo de vida boêmio e otimista, com destaque para a França, que se tornou o centro global de toda influência educacional, científica, médica e artística. A nação francesa era um polo difusor e Paris era o núcleo da Belle Époque mundial. Nas histórias de Lupin você percebe isso: há um uso sem moderação do autor de carros, máquinas fotográficas e outros itens extremamente modernos para a época. Vale destacar, enquanto movimento artístico da Belle Époque, o estilo “Art Nouveau”, um fazer ornamental de cores vibrantes e formas sinuosas, presente desde as fachadas dos edifícios até nos objetos decorativos, como joias (que aparecem bastante na história) e mobiliários. Todos esses elementos foram levados em consideração tanto na arte quanto na história da nossa adaptação para quadrinhos. Esse caldeirão de influências traz um tom leve e cheio de ironia para as histórias de Lupin, o que nos fez pensar que também deveríamos seguir essa proposta.
Mas quem é Arsène Lupin? Se na maioria das adaptações de Lupin se conhece de cara o rosto por trás do ladrão, o autor do personagem, Maurice Leblanc, através dos diálogos de seus personagens, sempre o viu como um camaleão:
“Arsène Lupin, o homem de mil disfarces, chofer, tenor, bicheiro, filho de família, adolescente, ancião, caixeiro-viajante marselhês, médico russo, toureiro espanhol!”
“Seu retrato? Como poderia fazê-lo? Vinte vezes vi Arsène Lupin e vinte vezes foi um ser diferente que me apareceu; ou antes, o mesmo ser de que vinte espelhos me teriam dado outras tantas imagens deformadas, cada uma com olhos diferentes, uma forma de rosto, um gesto, um vulto, um caráter próprio.”
Lupin, por sinal, é um nome inventado e não de nascença. A melhor pista para o verdadeiro nome do personagem está no conto “O colar da rainha” (mas não vou dar spoilers aqui...). É difícil até saber se todos os crimes atribuídos ao ladrão foram cometidos por ele mesmo... O ladrão se torna famoso e vira um queridinho da imprensa, que atribui todo crime não solucionado ao nosso ladrão. Claro que Lupin, em algumas histórias, chega a usar isso para manipular a imprensa e população a seu favor. Assim, para essa adaptação, definimos que Lupin era quase um fantasma, uma figura alegórica do imaginário parisiense. E ele ama isso, como ele mesmo diz:
“Tanto melhor que não possam nunca dizer com certeza: ‘Eis aqui Arsène Lupin’. O essencial é que digam sem medo de errar: ‘Arsène Lupin fez isso’.”
“Por que (...) hei de ter uma aparência definida? Por que não evitar o perigo de uma personalidade sempre igual? Meus atos já me revelam bastante. (...)”
Mais do que utilizar disfarces, Lupin assume IDENTIDADES diferentes. E ele é capaz de tudo para se passar por outra pessoa, inclusive elaboradas alterações corporais, enxertando produtos químicos em si mesmo ou ficando em uma posição por bastante tempo para mudar sua postura. E o que esse tipo de coisa fazia com a cabeça do personagem? Suas próprias falas denunciam que ele tem dificuldade de lidar com sua própria identidade e com as implicações psicológicas de uma vida sem rosto definido:
“Eu mesmo (...) não sei mais quem sou. Num espelho, não me reconheceria.”
“Está muito bem (...) mudar de personalidade como de camisa e escolher sua aparência, sua voz, seu olhar, sua letra. Mas acontece que a gente acaba não se reconhecendo mais no meio disso tudo, e isso é triste. Sinto atualmente o que devia sentir o homem que perdeu a sua sombra. Vou me procurar... e me encontrar.”
Por isso mesmo, em nossa história em quadrinhos, nos pareceu incorreto dar um rosto único a Arsène Lupin, já que trairíamos um dos principais conceitos do escritor Maurice Leblanc. Por sinal, isso é uma das coisas mais interessantes da leitura dessas histórias: muitas vezes demoramos a saber quem é ou onde está Lupin. Em alguns contos Lupin se revela no início, às vezes como narrador. Em outras vezes o conto é inteiro narrado por ele e só sabemos no final. Às vezes o narrador fala sobre um amigo próximo e descobrimos no desfecho que se tratava de Lupin. Isso faz da leitura do romance original uma coisa deliciosa, algo que tentamos levar para esse novo produto, fiel ao original, mas que soa como algo completamente novo, mesmo para os já iniciados no personagem.
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