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17 de jan. de 2021

Como começar uma história (Lista do Zé#33)

 

Eu acho que estava dentro de um ônibus quando uma história começou a nascer. Eu olhava para as margens semiáridas da estrada que partia ou chegava em Sobral, minha cidade, quando comecei a sonhar com uma história de… samurais. Era a história de um assassino aposentado. Agora ele era mendigo nas ruas de uma grande metrópole e, depois de receber a visita de um repórter, se viu obrigado a voltar à ativa contra a organização que o ensinou sobre a arte de matar. A história veio assim, quase toda, incluindo algumas boas ideias para um final (algo que acontece raramente). Estava com outros mil projetos na época, então anotei a ideia em vários pedacinhos de papel e pendurei num flanelógrafo no meu escritório. Quanto tempo essa ideia passou lá? Vou chutar aqui que uns cinco anos.

Essa introdução toda é apenas para iniciar uma conversa sobre um assunto que interliga várias perguntas comuns ao escritor iniciante: a) de onde vêm as ideias para as histórias ou b) como ter ideias para histórias ou c) por onde começar uma história. A resposta para essas perguntas é muito imprecisa, mas tem alguns caminhos mais comuns.


A maior parte das minhas ideias surge quando estou lendo um livro ou quadrinho ou assistindo um filme ou série. Quase sempre é um “e se...?”, uma variação daquilo que estou vendo. Eu nunca consigo desligar meu cérebro de escritor, nem mesmo quando estou com o material de outro artista. Isso significa que eu fico tipo público de show de mágica, tentando descobrir o segredo do truque daquilo que estou lendo/vendo. O truque, no caso, é descobrir a) como estão conseguindo me manter interessado naquela obra e b) como aquilo vai acabar. O item “b” é sempre muito interessante para gerar novas ideias… Às vezes eu tento adivinhar o final da história e falho miseravelmente. Aí eu olho para aquele final que eu pensei e, se eu achar ele melhor do que o que eu acabei de ver, provavelmente eu vou guardar aquela ideia de tentar “recontar” aquela história.

“Mas, Zé, isso não é plágio?”. Em alguns casos, pode ser. Então, CUIDADO. Eu poderia aqui indicar (e indico fortemente) que você veja o documentário Everything’s a remix, que explica que, no fim das contas, toda criação deriva de uma mistura de várias coisas que vieram antes, mas, antes, prefiro dizer que respeito muito as criações de outros colegas. Quando a vontade de recontar uma história vem, ela tem de vir junto com soluções que diferenciem a minha história daquela que deu origem a ela. Uma coisa que sempre me deixa muito tranquilo é que uma ideia minha passa por MUITOS tratamentos (uma forma de chamar as revisões e reconstruções da história, enquanto ela ainda está sendo criada). São tantas idas e vindas, que é muito provável que qualquer coisa que assemelhe a minha história a outra que a inspirou vire um sopro no produto final. Construir uma história inspirada em outras é o caminho mais comum do escritor iniciante, que muitas vezes quer fazer seu próprio Cavaleiros do Zodíaco, X-Men, Senhor dos Anéis ou Star Wars. O grande desafio é encontrar a forma de se inspirar sem ser um genérico. Às vezes a gente só precisa olhar um pouco ao redor.

Ideias podem vir também da simples observação do mundo. Já dizia o poeta Jessier Quirino que escritores são “prestadores de atenção”. Uma situação que você observou ou, MELHOR AINDA, que aconteceu com você, pode ser o pontapé inicial para uma história. Uma coisa que aprendi é que as melhores histórias que já contei são aquelas que advém de coisas que mexeram comigo. É muito provável que falar sobre algo que incomoda você faça muitas outras pessoas se identificarem com a sua história. Lembro de ouvir um podcast com o escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli falando sobre seu método criativo, que constava em sentar numa praça, observar as pessoas e tentar imaginar o que elas estavam passando naquele momento. Em Steampunk Ladies: Choque do futuro, há uma sequência onde dois garotos fazem pouco de uma garota quando ela os convida para brincar de boneca. Essa cena é inspirada numa situação vivida por mim, quando flagrei um garoto fazendo pouco da minha filha numa situação parecida. Quem já leu a HQ sabe que a garotinha dá a volta por cima. É assim que escritores se vingam da vida real: escrevendo histórias.

Corta agora para o final de 2020: surge um edital da Lei Aldir Blanc na minha cidade (já falei sobre editais aqui). Foram várias seleções de projetos pelo Brasil nessa lei e a principal característica de todos era um prazo apertadíssimo. Mas que história eu inscreveria naquele edital, tendo ela que ser inédita e precisando estar pronta em menos de dois meses? Olhei para o flanelógrafo e vi os papeizinhos recortados da ideia que tive na estrada. Parecia boa, mas ainda me incomodava, porque parecia demais com outras histórias que já vi por aí. Para não cair no risco de copiar algo involuntariamente, eu precisava adicionar alguns elementos em busca de alguma originalidade. Foi aí que meu senso de prestador de atenção entrou em ação.

Na minha adolescência, a chegada de um garoto novo na escola causou estardalhaço por conta de um boato que correu pelos corredores: ele seria sobrinho de um famoso pistoleiro do estado. Se aquilo era verdade ou não, eu nunca vou saber. O fato é que essa história voltou na minha cabeça quando peguei aqueles papeizinhos, me fazendo transformar toda a ideia, começando por uma mudança de cenário para o Ceará. Claro que essa mudança também vem do meu atual movimento de escrever mais sobre coisas que estão ao meu redor. E assim nasceu Mata-mata: uma história sobre pessoas que vivem para matar outras (uma ideia construída em cima de outras), mas também uma história sobre família e legado (uma vivência).

Tudo isso começou com samurais, dá para acreditar? Engraçado que, relendo a história, comecei a entender melhor o porquê da arma da última morte, algo que rolou inconscientemente, eu juro...

De onde vem as inspirações para suas histórias?

 

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21 de abr. de 2020

Prometeu inconfidente (conto) (Lista do Zé #30)



Olá, olá!

Que tal um conto hoje?

Era 2011 ou 2012, quando apareceu na Internet uma chamada para uma antologia da Editora Estronho com contos que misturassem os acontecimentos da Inconfidência Mineira com ficção científica ou fantasia (que hoje está disponível para venda aqui). Naquela época, como forma de treinar a escrita, eu tentava participar de todas antologias desse tipo abertas. E foi assim, com um tempo apertadíssimo, que escrevi o conto que vocês poderão ler logo abaixo, um encontro desse momento da história brasileira, lembrado nesse feriado nacional de hoje, com as ideias imortalizadas pela escritora Mary Shelley na sua obra-prima, Frankenstein ou o Prometeu Moderno, um dos meus livros favoritos.

Curiosidades sobre este conto
1. A cabeça de Tiradentes desapareceu mesmo.
2. Os textos extras que aparecem no início e no fim do conto só foram colocados para que ele alcançasse o número mínimo de caracteres exigido na seleção (você pode até ignorar se quiser, embora eu ache hoje que eles dão um certo charme).
3. Fiquei com uma vontade danada de revisar e reescrever o conto... Mas qual seria a graça, né? Melhor mostrar pra vocês essa foto da minha produção de dez anos atrás. Reli e ainda gosto da maior parte dele.

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Prometeu inconfidente
Por Zé Wellington
 
“Quereis, minhas senhoras, que vos conte uma história para disfarçar o enfado destas longas e frigidíssimas noites de maio? Mas, por melhor que seja a minha vontade, não sei como possa satisfazer ao vosso pedido... digo mal, - cumprir as vossas ordens. Este frio enregela-me as asas da imaginação; este vento glacial, que uiva pelos telhados, como uma matilha de cães danados, estes guinchos de corujas, que parecem lamentos de precitos, fazem a inspiração recolher-se toda encolhida aos mais íntimos esconderijos do crânio, tiritando de frio e de medo. A falar-vos verdade, minhas senhoras, tenho o espírito tão seco e estéril, como a caveira de um defunto enterrado há cem anos. Ah! falei-vos em caveira!... E não é que esta ideia de caveira veio despertar-me a reminiscência entorpecida pelo frio?! Foi como a vara mágica de Moisés, que fez rebentar água em jorros da aridez do rochedo do deserto. E, pois, vou contar-vos a história de uma caveira memorável. Não se arrepiem, minhas senhoras; não é história de almas do outro mundo, de trasgos, nem de duendes. É uma simples tradição nacional, ainda bem recente, e da nossa própria terra. Essa história eu a poderia intitular: História de uma Cabeça Histórica.”
A cabeça do Tiradentes, Bernardo Guimarães
 
 
I
Certamente a maioria das pessoas odeia ir ao dentista. Eliseu até que gostava: era uma das poucas situações em que o menino não precisava falar com quem estava com ele. Com aquele monte de ferramentas na boca, a sagrada obrigação de ser uma criatura social pertencia ao doutor.

- Com anestesia ou sem anestesia, Eliseu?

- Qual é o que dói menos? - disse o garoto com dificuldade, cuspindo na bata do médico.

- Possivelmente as duas doem do mesmo jeito...

Eliseu arregalou os olhos e antes que pudesse responder, o dentista puxou rapidamente o alicate da boca do garoto. Sangue espirrou para todos os lados, especialmente sobre o rosto do menino, que nem teve tempo de sentir dor. Delicadamente aquele doutor limpou o rosto de Eliseu, seu sorriso acalmando a perda do dente.

- Não é interessante, garoto, o funcionamento do corpo? Todo o fluido que corre nas nossas veias... O delicado fluxo do indivíduo? - disse o dentista.
Com a mão na boca, recuperando-se do trauma, Eliseu não conseguiu responder. O doutor riu e mudou de assunto, talvez pensando que o garoto pudesse não ter compreendido.

- É o meu último dia aqui, e você me dá sangue de presente, Eliseu... Vou demorar horas limpando este consultório.

- Você vai embora, doutor Joaquim? - Eliseu já se recuperava.

- Já chega deste lugar. Em tempos como estes a carreira militar é o melhor para um rapaz pobretão como eu. Seguirei patrulhando pelo Caminho Novo.

- Ser soldado deve ser emocionante... - disse Eliseu, levantando-se da cadeira.

- Tire essa ideia da cabeça, menino. Você é rico. Já deve ter uma cadeira na Universidade de Coimbra com seu nome. Você vai ser alguém na vida, não vai ser esquecido assim que morrer. Parece que quando falam de mim só dessa terrível alcunha que me botaram é que se lembram...

- Tiradentes, - um rapaz adentrou a sala gritando - já é hora!
Silvério, um rapaz comunicativo e bem mais novo que Tiradentes, invadiu o ambiente de forma expansiva, mexendo no material do dentista. Eliseu se incomodou com a liberdade do novo visitante, mas imaginou que ele poderia ser bem próximo ao doutor.

- Nosso trem parte logo.

- Calma, Silvério... Nunca vi alguém mais ansioso pela própria morte... Por que enfim é isso que procuramos na vida militar, correto? - disse Tiradentes, voltando-se para Eliseu.

- E o salário, Tiradentes... Esqueceu do polpudo salário que nossa maravilhosa coroa de Maria Louca nos proverá? - disse o jovem Silvério, sorrindo com seus dentes sujos e mal cuidados.

Tiradentes virou-se para Eliseu e tocou carinhosamente seu queixo:

- Preciso ir, menino. Quem sabe não nos encontramos por aí. Da próxima vez o doutor pode ser você... Um doutor de verdade, de diploma e tudo mais. Muito mais que um “arranca-dentes” minerador... Faça algo bom de sua vida, criança.
 
II
A Universidade de Coimbra era um ambiente com um quê selvagem. Entre nobres circulavam figuras exóticas, cabeças que pensavam à frente do seu tempo. Ou pelo menos assim achavam. Filho do Barão de Congonhas do Campo, Eliseu ganhara a oportunidade de viajar a Portugal, onde receberia educação formal superior. O jovem havia optado pelas ciências naturais como sua área de interesse.

- É um ramo interessante, Eliseu. Mas o que precisam na colônia é de engenheiros. Precisamos abrir estradas e canalizar os rios do Brasil selvagem! - um empolgado jovem, de cabelos ensebados e roupas bem passadas, declamou levantando-se da mesa, onde vários universitários congregavam.

- Eu certamente compreendo a sua exaltação, Luís Antônio. Mas desde criança me interessou entender a natureza, o funcionamento dos seres humanos... Na verdade, as ciências que me escolheram.

- Nunca deixe que sua paixão mande em você, Eliseu - de forma mais reservada, outro rapaz se manifestou. Francisco tinha o costume de posicionar-se com esse tipo de frase misteriosa - Conheço homens que perderam a razão aventurando-se em campos como a filosofia ou a lógica, desesperados pela verdade.

- A mim basta entender melhor o corpo humano, ir além da medicina - Eliseu apontou o próprio peito - Existem mais coisas nos guiando que se pode imaginar.
 
- Para alguns só um instrumento pode guiar o homem: o dinheiro. Nesse grupo se encaixa a realeza brasileira! - Luís Antônio esbravejava novamente, abrindo os braços em seu discurso - Nada mais minha família consegue tirar de ouro. Os impostos são vergonhosos. O tal do “quinto” é um ultraje! Agora peço que reflitam comigo: vejam o que aconteceu na França... Não cairia bem uma revolução no Brasil?!

- Se você quer a forca, Luís Antônio, deve gritar mais alto e fazer com que todos que passam pelo pátio da universidade lhe escutem... - disse Francisco.

Eliseu levantou-se da mesa e fez sinal de despedida aos amigos. Não tinha grandes interesses em revoltas ou política. Havia marcado para aquela tarde um encontro com um mestre na biblioteca. Durante a semana o professor João de Assis havia falado de um nobre estudante suíço, com ideias que, essas sim, poderiam revolucionar alguma coisa: o campo das ciências.

A biblioteca da Universidade de Coimbra era uma das maiores da Europa. Dezenas de fileiras de estantes criavam um labirinto ao qual Eliseu ainda não se habituara. Depois de alguns minutos circulando entre os escritos, o jovem encontrou seu mestre orientador, que estava junto de outros magistrados. Na roda, várias cabeças brancas, aparentando estarem seduzidos por um jovem de cabelos longos e negros que discursava com uma publicação de Paracelso na mão.

- Eliseu! Aguardávamos sua chegada ouvindo as incríveis proposições de nosso convidado. Permita-lhe apresentá-lo...

- Meus cumprimentos, Eliseu - o sotaque forte do jovem denunciava sua ascendência germânica. Mesmo assim, o domínio da língua portuguesa impressionava - Muito ouvi falar de você.

- O prazer é meu, senhor...

- Por favor... Apenas Victor. Não me chame pelo sobrenome, fazendo-me parecer velho, como os senhores aqui querem que eu pense que sou - apesar do tom sério, Victor esforçava-se para mostrar alguma simpatia.

- Ora, Victor, com suas ideias é difícil acreditar em sua pouca idade. É necessária uma vida inteira para pensar na mesma intensidade que você - o professor João parecia não se importar em bajular o convidado - Mas acredito que Eliseu adoraria ouvir um pouco dessas ideias enquanto tomamos um chá no refeitório da universidade.

- Seria um imenso prazer - disse Eliseu, já apontando a saída da biblioteca.

Durante uma tarde inteira, Eliseu e o professor ouviram Victor. Seu fascínio pelas leis da vida contagiava os ouvintes. Discursava sobre questões relacionadas ao conceito da abiogênese, a irreversibilidade da morte e ainda polêmicas relacionadas à alquimia, esta última perdendo espaço dia a dia para outras ciências do mundo moderno. Ao mesmo tempo em que falava, notava-se certa inconformação e olhar triste em seu semblante. Victor parecia fazer de seus estudos uma guerra particular.

- Acho que certas leis da vida talvez não possam ser revertidas... - Eliseu não conseguiu evitar pensar em voz alta.

- Ora, nobre colega, cada descoberta que o homem fez nos últimos anos partiu de um questionamento, de uma impossibilidade. Sei que muitas das minhas ideias tiram o sono de religiosos... - disse Victor com um pequeno sinal de irritação - Sei bem como Galileu se sentiu quando expôs sua teoria sobre o sol no centro do universo, os preconceitos e superstições que barraram suas descobertas.

- Quando pensar no sol, Victor, não se lembre de Galileu: lembre-se de Dédalo e Ícaro. Ou ainda de Prometeu - o professor João deu um curto sorriso ao final dessa afirmação. A ironia foi captada imediatamente pelo convidado, que pareceu incomodado.

- Hum. Acho que devo voltar à Suíça. Minha viagem a Portugal, ao que parece, não deve trazer grandes frutos. Auf Wiedersehen, senhores.
Victor levantou-se do seu banco, fez um cumprimento da forma mais educada que pôde e não aguardou a resposta dos seus ouvintes. Aquela discussão ainda ecoaria na cabeça de Eliseu por alguns dias.
 
III
A cansativa viagem de navio de volta ao Brasil estava finalmente acabada. Eliseu foi recebido pelos pais de forma efusiva. Junto deles, Elisabete, antes uma amiga de infância barulhenta e típica garotinha rica, agora uma bela dama de família nobre e quem se insistia dizer ser a melhor pretendente para o jovem recém-chegado.

- Meus cumprimentos, meus pais. Senhorita Elisabete... - Eliseu fez uma pequena reverência.

- Vejam se não é o novo médico da família! - o pai de Eliseu abraçava-o desengonçadamente.

- Estudei ciências naturais, meu pai... Acredito que “cientista” seja mais adequado.

- Não complique, meu filho... Estávamos ansiosos por sua volta. A jovem Elisabete não parava de falar em você durante esses anos - finalizava a mãe de Eliseu, transformando a situação na mais desconfortável possível.

Na carruagem que levava a família inteira ao lar, o pai de Eliseu o inteirava sobre as novidades na colônia. Percebia-se certo clima tenso nas ruas de Vila Rica.

- Depois dos franceses, deu nos jovens brasileiros de separar nossa capitania do restante do Brasil... Não que eu esteja satisfeito com a coroa... Continuam taxando o ouro até que pouco sobre a quem o minera. Mas, mais do que a gravata-borboleta, a forca parece ser o adereço de pescoço na moda no momento. Certos pensamentos não podem fazer as pessoas perderem a cabeça... Se é que você me entende, filho...

- Não se falava em outra coisa na universidade, pai.

- Enfim, vários foram presos. Alguns devem ser soltos. Têm suas costas largas, pertencem a cultos que vão além dos poderes da realeza... No entanto haverá aqueles que serão exemplos, que não devem escapar da punição. Inclusive, entre os presos, há alguém que talvez você conheça... Fazia bicos cuidando dos dentes da nobreza da cidade...
 
- Doutor Joaquim! - Eliseu não conseguiu esconder a surpresa.

- Por aqui era conhecido pelo apelido de “Tiradentes”... Andou se envolvendo em confusões no Rio de Janeiro. Está preso junto com outros de sua laia.

Eliseu pareceu sentido por não poder fazer algo a respeito. Imaginar que o doutor lutava pelos direitos da população fazia Eliseu nutrir algum respeito por ele, talvez nem tenha percebido a contaminação com essas ideias no ensino superior.

Já em sua casa, Eliseu continuava os estudos. Andava um pouco perturbado nos últimos meses: havia chegado a uma encruzilhada. Incomodava a ideia de não ir além das conclusões dos autores que estudava. Às vezes pensava não ter o estímulo certo, a inspiração adequada para encontrar novas conclusões. Tentava colocar os pensamentos em ordem quando ouviu a porta bater.

- Eliseu! A senhorita Elisabete o aguarda na sala de jantar! - a voz empolgada da mãe de Eliseu do lado de fora do quarto machucava seus tímpanos.

Foi encontrar-se com a jovem senhorita na sala de casa. Por mais bela que fosse a convidada, Elisabete com certeza não era das companhias mais interessantes no momento. Acostumado com as rodas calorosas de debates científicos, assuntos cotidianos como a vida social da burguesia ou o último romance de Castelo Branco não eram interessantes o suficiente para afastar os pensamentos de Eliseu de seu trabalho, um tratado que questionava as bases da biogênese. A sineta na porta de entrada da casa salvou o jovem de uma estafante descrição dos desenhos bordados no vestido mais novo da rainha.

Um empregado entregou um grande pacote a Eliseu.

Ao ver o nome do remetente, os olhos de Eliseu brilharam. Pediu licença à Elisabete, já se desculpando, afirmando ter de ir ao banheiro tratar de “assuntos naturais”. A garota sorriu e disse voltar em outra hora, recomendando a leitura de um bom romance à toalete, caso o intestino resolvesse não “trabalhar” de forma adequada.

Eliseu bateu com força a porta de seu quarto, trancando-o. Verificou mais uma vez o nome do remetente no envelope. Dentro dele um calhamaço de papel com uma série de estudos e o que parecia ser um diário. Um sucinto bilhete completava o pacote:

“Prezado colega, por vários momentos ensaiei jogar esse material à lareira. No entanto o conhecimento é um presente sem valor, se você não pode compartilhá-lo com alguém. Ao tempo que sigo na minha jornada moral final, procurando expiar meus pecados, deixo-lhe que analise todas as minhas descobertas. Sinto que esteve certo no nosso encontro e peço-lhe para que tome as providências adequadas para com este estudo. Peço perdão pela rudeza em minha despedida e espero que essa correspondência forneça o final adequado à nossa relação. Atenciosamente, Victor”.
 
IV
O decreto de condenação de Tiradentes à forca era o assunto da cidade. Eliseu recebeu a notícia com tristeza. Mas não pensou sobre isso durante muito tempo. No último ano a evolução de seu estudo foi notável. Nada seria possível sem as anotações de Victor, a quem o jovem cientista tinha enviado diversas correspondências sem obter nenhum retorno, como se o suíço tivesse desaparecido da face da Terra. De qualquer forma aquele parecia um caminho sem volta. Logo contestaria a teoria da biogênese. Eliseu sentiu que em breve criaria a vida em laboratório, por meios próprios.

Diariamente o jovem cientista visitava o necrotério da cidade, onde lhe eram permitidas autópsias em escravos e indigentes. Passava horas debruçado sobre os corpos recém mortos, exercitando o solve et coagula. Demorou a acreditar que Victor havia encontrado suas respostas em textos alquímicos, que uma prática antiga e obscura derrotaria as ciências naturais. Não apenas isso: suas descobertas poderiam oferecer uma derrota à própria morte.

No exato momento em que separava a cabeça de um velho negro morto, Eliseu ouviu barulhinhos agudos, como saltos finos, acertando o chão de madeira às suas costas.

- Eu... Eu... Poderia falar com você, Eliseu...? Lá fora, por favor! - enojada com a cena com que se deparava, Elisabete tinha um lenço cobrindo nariz e boca e nem esperou o jovem responder para sair da sala de autópsia.

Eliseu não parecia satisfeito pela interrupção de seu trabalho, mas as obrigações sociais, às quais ele ainda se sentia apegado, fizeram-no acompanhar à moça a calçada.

- Há uma semana espero algum comunicado seu, Eliseu! Você prometeu me levar ao teatro... - a jovem parecia indignada.

- Estou numa fase crucial da pesquisa, Elisabete. Sempre existem grandes peças em cartaz. Sei que a senhorita pode aguardar mais algumas semanas...

- Creio não ser possível, caro senhor. Caso não apareça pela noite em minha residência serei obrigada a aceitar o convite do nobre bancário da cidade.

- Pode ser que apareça, cara dama. Se conseguir executar meu experimento a tempo...

- Você foi avisado, Eliseu. Até mais ver. - Elisabete deu às costas, fazendo seu vestido serpentear no chão de terra batida como o rabo de um camaleão.

O jovem cientista retornou ao seu experimento não parecendo se importar com a ameaça da moça. Estava justamente testando a peça final de seu quebra-cabeça. Não poderia haver distrações. No entanto, Eliseu decepcionou-se ao ver que a cabeça do autopsiado era incompatível com seus planos. Teria que esperar um novo corpo, nas condições ideais, chegar ao necrotério.

Ansioso, Eliseu retornou à sua residência. Não almoçou e nem jantou. Foi direto ao seu quarto e folheou o diário de Victor, tentando conter sua agitação. O tom de horror que a narrativa do estudioso suíço tomava ao final dos escritos não impressionava mais o jovem cientista. Interessava-lhe muito mais emular o experimento do colega implantando algumas de suas próprias considerações. Mal tinha deitado na cama, quando ouviu um estardalhaço na rua. Um verdadeiro carnaval tomava conta da cidade. À frente do batalhão real, traziam a cabeça de Tiradentes.
 
V
Aquela noite parecia mais escura do que as outras. Na Praça de Santa Quitéria, um sentinela do império se esforçava para dormir. A imagem daquela cabeça numa estaca, que ele tinha a missão de vigiar, assombrava seu sono. Do outro lado da rua, esgueirando-se pelas esquinas de Vila Rica, o padre Manuel da Silva Gatto aproximava-se do soldado adormecido com uma vara. O religioso acreditava que aquela cena macabra subvertia não só os valores morais da cidade, mas também os ideais de liberdade em que ele acreditava. A densa neblina o ajudaria a furtar a cabeça daquele que ele acreditava ser um honrado herói, um mártir de uma capitania livre. Ou, quem sabe, até país livre.

A densa neblina da madrugada prejudicava a visão do padre, que, de longe, espetava a vara em direção à estaca que prendia a cabeça de Tiradentes. Mesmo sem enxergar o alvo, Gatto tentou diversas vezes, até perceber, num momento em que a neblina lhe possibilitou alguma visão, que a cabeça não estava mais lá. Assustado, fugiu ao perceber que o sentinela estava despertando. O soldado real surpreendeu-se com a estaca vazia e tratou de preparar a melhor desculpa que tinha para justificar o roubo.
 
Eliseu corria o mais rápido que podia até o necrotério, olhando para os lados de forma desconfiada. Dentro do saco de tecido, a cabeça de Tiradentes parecia conservada, provavelmente pela salmoura a que ela tinha sido submetida. Uma superstição para torná-la infértil, mas que veio muito a calhar.

O quebra-cabeça estava montado, todos os procedimentos pareciam estar em ordem. A cabeça foi conectada ao grande mosaico humano criado por Eliseu. Seguindo passo a passo as anotações de Victor, Eliseu aguardou. Primeiro alguns minutos. Depois uma hora. Uma decepção pareceu tomar-lhe, pois nada acontecia.
 
- Não! Não pode ser! Levanta, criatura! - Eliseu enfurecia-se enquanto batia no peito do ser que ele havia criado. Primeiro lentamente, depois raivosamente.

Num movimento brusco, a criatura ergueu-se com um urro grave. Assustado, o jovem cientista caiu ao pé da parede. Durante alguns segundos apenas observou o ser formado por diversos pedaços humanos sentado sobre sua mesa. Olhando em volta da sala, a criatura percebeu Eliseu.

- Eli... Zeu... Garoto...

Um choque subiu pela espinha de Eliseu. Aquilo poderia ser a maior descoberta científica da humanidade, mas a macabra lembrança que aquele mosaico humano tinha o perturbava.

- Você... Ainda me conhece... É você, Tiradentes?

- Tiradentes está morto... Eu estava lá... Eu era ele... - o ser agora articulava de forma impressionante, o que acelerava os batimentos cardíacos de Eliseu.

Levantando-se da mesa, o ser caminhou até o cientista e ajoelhou-se perante seu criador, encarando-o face a face.

- Por quê? Por que você me trouxe de volta?

- Qualquer um gostaria de ter uma segunda chance... Pela cidade você é conhecido como um herói! E ainda mais: você agora é a prova de que não é apenas Deus que pode criar a vida!

O ser segurou Eliseu pelos ombros agressivamente.

- Você pensa que é Deus?! É por isso que me trouxe de volta? Acha que eu queria estar aqui? Eu não mereço mais viver! Nem muito menos ser chamado de... herói! Você não sabe o que eu passei... Nos três anos que fiquei preso... fui torturado diariamente. Espremiam-me por qualquer informação... Entreguei cada revolucionário de Vila Rica... da mesma forma que Silvério me entregou à coroa. A revolução é uma grande ilusão... E eu fui só um maldito peão.

A criatura levantou-se e circulou pela sala. Olhou para si mesmo várias vezes. Chorou. Agitado, começou a correr pela sala quebrando todas as coisas que encontrava. Eliseu deixou o canto da parede e tentou aproximar-se de sua caixa de ferramentas. A criatura parecia não se importar mais com ele.

O jovem não sabia como proceder. Estava diante de sua maior descoberta. Do fim da encruzilhada. Mas encarava uma criatura incompleta, incapaz de perceber sua própria importância. Um ser danificado como qualquer ser humano normal. Eliseu aproximou-se de um bisturi que estava à sua frente.
 
- Você não tinha o direito! Minha morte foi uma condenação por meus erros! - o ser gritava agora sem nenhuma reserva.

Eliseu começou a se preocupar com o alarde que ele fazia. Logo haveria guardas à sua porta.

- Acalme-se, doutor... Você precisa entender o que você se tornou... - com a mão que levava o bisturi escondida em suas costas, o cientista tentou aproximar-se da criatura.

Por um momento, o ser se acalmou. Baixou a cabeça e começou a gargalhar insanamente.

- É irônico, garoto. Devo-lhe algo! E ainda lembro o que você me deu na última vez que nos vemos: SANGUE!

O ser pulou sobre Eliseu, e um confronto se deu sobre a mesa. Durante alguns minutos o cientista tentava, em vão, acertar o bisturi na criatura. Jogando-o com força sobre a parede, o amargurado ser desarmou o jovem. Eliseu mal pôde ver quando a criatura quebrou o recipiente de uma lamparina sobre si mesmo. O combustível começou a queimar o seu próprio corpo, enquanto o ser gargalhava de prazer.

- É o que acontece quando você chega perto demais de Deus, garoto... - em chamas, o ser pulou sobre Eliseu.

Tentando desvencilhar-se do monstro, Eliseu sentia seu corpo queimar. Ao mesmo tempo, toda a sala parecia incendiar-se com os resíduos do combustível. Criatura e criador pararam de respirar quase ao mesmo tempo.
 
VI
No dia seguinte, uma parte da população de Vila Rica comentava o incêndio no necrotério. Pouco sobrara da sala de autópsia. Ferramentas derretidas e anotações queimadas, entre elas um velho diário, pilhavam-se ao lado de dois corpos fundidos e irreconhecíveis no meio da sala. Mas naquele momento o assunto que incomodava a maior parte dos cidadãos da vila era o desaparecimento da cabeça de Tiradentes.
 
“Portanto condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi do Regimento pago da Capitania de Minas, a que, com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde no lugar mais público dela, será pregada em um poste alto, até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios das maiores povoações, até que o tempo também os consuma, declaram o réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável réu; [...]”
Sentença proferida contra Tiradentes em virtude do levante e conjuração de Minas Gerais
 
 
“De pena algumas lágrimas verteram,
Mas resignados logo as enxugaram.

 
Diante deles estava inteiro o Mundo
Para, a seu gosto, habitação tomarem,
E tinham por seu guia a Providência.

 
Dando-se as mãos os pais da humana prole,
Vagarosos lá vão com passo errante

Afastando-se do Éden, solitários.”
Paraíso Perdido, John Milton

15 de jul. de 2016

Violência doméstica (Lista do Zé #5)

Olá, olá!

Vamos tentar uma coisa diferente hoje? Que tal um pequeno conto?

Escrito nos primeiros dias de 2013, Violência doméstica foi um conto que fiz para participar da coletânea The King (Editora Multifoco), que reuniu pequenas histórias de autores brasileiros inspiradas no trabalho do Stephen King. A ideia surgiu enquanto eu lia um conto do King chamado Parto em casa (publicado no Brasil no primeiro volume de Pesadelos e Paisagens Noturnas, livro de contos excelente que eu mais que recomendo). Você já deve ter lido um livro ou assistido um filme e em algum momento ter pensado: "e se a história fosse por este lado?". Foi daí que surgiu Violência doméstica. Outra curiosidade interessante é que escrevi a primeira versão deste conto praticamente em uma "sentada" só, no confortável teclado (#sqn) do meu iPad, deitado numa rede, num alpendre de um sítio na Serra da Meruoca. Então quaisquer indicações a este cenário não será mera coincidência.

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Violência doméstica, por Zé Wellington

Quando deu a notícia no jornal na TV, a apresentadora não evitava olhar torto para seu colega e marido do outro lado da bancada. Imaginava como estariam os trigêmeos em casa. "Estão por todo o planalto. O Ministério da Defesa ainda não se pronunciou, mas acredita-se que se trate de algum experimento descontrolado. Que Deus nos ajude. Boa noite". Encerrou categórica e sem conseguir evitar um soluço. Foi seguida de um boa-noite ainda menos animado do outro jornalista.

Em casa, Penha estremeceu. O dia que o pastor sempre falou havia chegado. Podia ficar tranquila tendo pagado o dízimo religiosamente em dia nos últimos meses? Deitou-se na velha rede e começou a rezar.

Pela internet, especialistas especulavam a origem da infecção. Os primeiros casos, rapidamente isolados na China e na Índia, eram praticamente iguais no restante do mundo. Rússia, Japão, um caso isolado - mas suficiente para infectar Berlim inteira - na Alemanha. A lógica apontava para um caso no Brasil nos próximos dias. No aniversário de um mês do primeiro morto-vivo um gari do Espírito Santo teve um enfarto e, dois segundos depois de cair morto, avançou no pescoço de uma mendiga, que, trinta segundos depois, deixou cair no chão o apetitoso sanduíche que tinha ganhado de um executivo e abocanhou seu bebê maltrapilho. Rapidamente as regiões sul e sudeste do país estavam dominadas, junto com Argentina, Uruguai e uma parte do Chile.

Penha tinha desistido de ir à igreja logo na primeira semana. Nenhum monstro tinha aparecido na sua cidade ainda. Sem monstros, sem mordidas. Sem mordidas, sem monstros. Simples assim. Com o exército barrando as entradas da cidade, aquele local parecia seguro. Foi quando ouviu que em alguns cemitérios os "velhos" mortos também estavam querendo levantar. Mandou Osmar Filho e Vera Lúcia para a casa de sua irmã. Sozinha em casa sentou-se na cadeira de balanço e se pôs a tricotar. Não ia demorar.

As maiores capitais do mundo estavam em quarentena. A ONU aconselhava que todos que morressem fossem cremados. Houve protesto de diversos grupos religiosos contrários a transformação dos defuntos em cinzas. Nos Estados Unidos duas igrejas pregavam a "autotransmortização" como um retorno aos primórdios e a inocência despida dos pecados capitalistas. Uma onda de suicídios se iniciou. Agora bastava morrer para se tornar um morto-vivo.

A porta do quintal gemeu e Penha se agitou. Desajeitada, pegou a única arma que dispunha a mão: uma velha vassoura de palha. Ficou tremendo atrás da porta esperando até o momento em que um gato preto entrou na sala. Respirou aliviada e pensou que deveria se preparar melhor para o que estava por vir. Com a infecção, as licenças para armas de fogo estavam dispensadas. Penha comprou um calibre trinta e oito, mesmo o vendedor oferecendo um modelo automático. Seu pai teve uma dessas e uma vez até deixou que ela atirasse num monte de garrafas. Penha precisava de algo familiar naquele momento.

Com as tevês interrompidas, as pequenas rádios AM locais eram a única forma de as pessoas ficarem atualizadas sobre a infestação. Eram cinco da manhã quando o repórter policial noticiou que um cientista indiano havia descoberto uma vacina a base de alho capaz de evitar a infecção. "Não vai trazer de volta seu parente, mas vai evitar o súbito apetite por miolos caso você seja mordiscado", disseram com palavras mais bonitas na coletiva de imprensa. Sem novas infecções, em um mês a população de zumbis tinha diminuído em sessenta por cento. Voluntários - em sua maioria caipiras das cidades interioranas sobreviventes - formaram o exército de espingardas que parou a proliferação dos desmortos. Em mais alguns dias tudo aquilo seria passado. Hollywood já tinha pelo menos três filmes engatilhados, sendo um deles o inusitado ponto de vista de um zumbi, estrelado por Bill Murray.

Depois que ouviu as boas novas no rádio, Penha parecia tranquila quando pisou no quintal de casa. Respirou devagar, deliciando-se com o cheiro das fezes do galo que criava no fundo da casa. Mal se virou para entrar quando uma mão brotou do terreno arenoso segurando seu calcanhar. Penha reagiu instintivamente chutando o membro, que parecia estar em estado avançado de decomposição. Correu para dentro de casa, mas antes de fechar a porta pôde observar aquele cadáver levantar-se desajeitado. "Ainda parece o mesmo bêbado de sempre", pensou. Empurrou a velha máquina de costura à frente da porta e correu até seu quarto, desenrolando o trinta e oito de um velho lenço, primeiro presente de namoro. Podia ouvir o som violento da porta do quintal sendo esmurrada. A última pancada parecia ter derrubado a velha Singer no chão. Penha se posicionou no corredor. Iria encará-lo de frente. O invasor caminhava devagar com a cabeça baixa, puxando uma perna. Penha tremia, mas mantinha-se com a arma apontada para o defunto, que interrompeu sua caminhada e olhou nos olhos da desesperada mulher. "Precisa engatinhá-la, meu bem", disse o desmorto com suas carcomidas cordas vocais. Penha deu um pulo para trás quando percebeu que ele podia falar. "Como estão os meninos? O Oscarzinho ainda tá dando trabalho pra professora?", prosseguiu o cadáver, que após essa última frase teve que puxar uma minhoca de dentro da boca. "Comparado a isso sua comida até que não é tão ruim", continuou tagarelando com aquele meio sorriso irônico que Penha tinha aprendido a odiar. O zumbi sentou-se na cadeira de balanço no corredor da casa. Parecia tranquilo e à vontade.

Pilhas de corpos eram queimadas em praças públicas sob muitas comemorações. Várias pessoas diziam ter voltado da “desmorte” na televisão. Uma mulher lutava na justiça para continuar casada com um morto-vivo. Dois chineses anunciaram fábricas de calçados movidas a trabalho zumbi. Podia ser o fim da mão-de-obra barata e do trabalho escravo nos países subdesenvolvidos.

“Eu devia saber que cada surra que te dei foi pouca”, continuava aquele desmorto na sala de Penha, “achei que tu sabia onde era teu lugar e olha o que tu fez comigo". Penha tentava respirar devagar e se concentrar quando alguém tocou a campainha. Era Tonico, vizinho da frente. Penha não queria abrir a porta e ter de explicar por que o cadáver de seu marido - que ela dizia ter saído de casa para comprar um maço de Derby e nunca mais tinha voltado - estava ali parado, balançando na cadeira. Permaneceu em silêncio e mal percebeu quando o zumbi levantou e a agarrou pelo pescoço. “Tu bota veneno na minha comida e acha que eu vou deixar por isso mesmo? Vou te dar uma surra que você nunca mais vai esqu--", antes que o zumbi pudesse terminar de falar, Penha enfiou o cano do revolver em seu olho putrefato. Atordoado, o morto-vivo cambaleou até a porta do quintal, onde Penha o acertou com sua panela de pressão, forçando-o a sair da casa. Ficou tentada a terminar o serviço com o trinta e oito, mas o barulho podia chamar a atenção do vizinho. Pegou a garrafa de álcool embaixo da pia da cozinha e despejou sobre o marido. Antes de acender o fósforo, Penha contemplou o desmorto por alguns segundos. Ele parecia incomodado com a ardência do combustível. O zumbi queimou durante pelo menos quinze minutos.

Discursos decorados por cientistas condecorados se tornaram um clichê na televisão. Por um instante todas as guerras foram esquecidas e as diferenças entre raças e religiões pareciam nunca ter existido. O mundo parecia ter mais paz do que antes. As famílias mais unidas. Enquanto isso Penha chorava enquanto varria as cinzas no alpendre do seu quintal.
* * *
Bom, é isso. Agrada a vocês a ideia de vez ou outra eu colocar um conto (ou uma história em quadrinhos, quem sabe) aqui? Responde este e-mail e me diz o que achou.

Ah, é sempre bom lembrar que estou colocando tudo que leio nos meus perfis no Skoob (me sigam também no meu perfil de autor) e Goodreads e o que assisto está indo pro Filmow. Cliquem nos links e me adicionem por lá. E, se já leu meus quadrinhos, não esqueça de deixar sua avaliação neles.

Você pode também deixar um comentário sobre esse texto aqui ou no meu Facebook, no post sobre ele.

Bem rapidinho

  • Lembra que eu falei d'Os 12 Trabalhos do Escritor, podcast do escritor AJ Oliveira? Os episódios continuam fantásticos e a recomendação permanece para aqueles que pretendem se aventurar em escrever. E para motivar ainda mais os ouvintes, ofereci um exemplar de Quem Matou João Ninguém? e outro de Steampunk Ladies: Vingança a Vapor, com dedicatória e autógrafo, para sorteio. Clique aqui para saber como participar.
  • Ainda falando de podcasts, gravei mais um episódio com os companheiros de pena PJ Brandão e Luis Carlos Sousa, desta vez sobre personagens e com a participação especialíssima da Marcela Godoy, roteirista da última Graphic MSP, Papa-Capim: Noite Branca. Um papo de alto nível que você pode escutar clicando aqui.
  • Termina hoje a votação do Troféu HQMIX! Se você é votante do prêmio basta acessar este link (acessível só pra quem se cadastrou antecipadamente). E se por um acaso você leu e gostou de Steampunk Ladies, vale lembrar que estamos concorrendo em algumas categorias: Novo Talento - Desenhista (Di Amorim e Wilton Santos), Novo Talento - Roteirista (Zé Wellington), Colorista (Ellis Carlos), Edição Especial Nacional (Steampunk Ladies) e Projeto Editorial (Steampunk Ladies).
Por hoje só. Até a próxima e cuidado com mortos enterrados no quintal!


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13 de mar. de 2015

4 de jul. de 2011

Avarento!

Capa da antologia VII Demônios - Avareza, da Editora Estronho.
Mais uma antologia sai com meu nome, provavelmente ainda esse ano. Trata-se de mais um livro da Editora Estronho. A coleção VII Demônios é formada por sete livros de contos, cada um sobre um pecado capital. Entrarei no volume dedicado à Avareza. Conheça todos os autores deste volume: Chico Pascoal (Os doze apóstolos), Erivelton Clarindo Gomes (O tesouro do Mão Furada), Fábio D´Oliveira (Pérfido), Felipe Castilho (O dono da rua), Ghad Arddhu (Segredos sob a Égide de Mercúrio), Lemos Milani (A maleta preta), Luciano Milici (Academia inferno), Raphael Montes (O porquinho de porcelana da vovó), Rodolfo Santos (É tudo meu), Thiago Vieira (Sua Bethânia), Valentina Silva Ferreira (Águas malditas), ViviFerr (Carmen) e Zé Wellington (O trágico destino do colecionador de riquezas). Não perca as contas, são quatro antologias com trabalhos meus a serem publicadas esse ano: Quadrinhos em História (Editora Multifoco), Histórias Fantásticas - Volume 3 (Cidade Editorial), História Fantástica do Brasil (Editora Estronho) e VII Demônios - Avareza (Editora Estronho).

Depois dessa coletânea, vou interromper provisoriamente minha participação em seleções de literatura e me voltar para o lançamento do novo trabalho da Sobre o Fim (por sinal, você já deu um pulo no site para escutar a nova música?) e a conclusão de dois grandes projetos em quadrinhos. Mais novidades em breve...

E para não perder o post, fica o convite para I Sobral Pró Rock, show gratuito que acontece nesse sábado na Margem Esquerda. Abaixo o cartaz com mais informações.


26 de mai. de 2011

Tiradentes e metalcore

Capa do livro História Fantástica do Brasil - Inconfidência mineira.
Recebi, com muita satisfação, a notícia de que fui selecionado para a antologia História Fantástica do Brasil - Inconfidência mineira, da Estronho Editora. O objetivo da coletânea era juntar textos que tivessem como base a Conjuração Mineira (ou Inconfidência), mas utilizando elementos da literatura fantástica. Depois de muita pesquisa, acabei por criar uma versão frankensteiniana da frustrada tentativa de revolução que ocorreu no final do século XVIII em Minas Gerais. O livro terá contos ainda de A. Z. Cordenonsi, Amanda Reznor, Chico Pascoal, Davi M. Gonzales, Goldfield e Jota Marques, com organização de M. D. Amado e Celly Borges. O prefácio fica por conta de Gabriel Perboni, do site Histórica, que, coincidentemente, me forneceu a maior parte da pesquisa para meu conto, através do podcast Visão Histórica 019 - Tiradentes: Herói ou traidor?. A seleção para esse livro me deixou duplamente feliz. Primeiro por publicar meu primeiro trabalho com a Estronho & Esquésito, site que desde sempre vem contribuído com a fantasia e ficção brasileiras e dando oportunidade para os novos autores da literatura de gênero. Segundo por ser prefaciado por alguém do Histórica, um site desde já recomendadíssimo, que descomplica a história e do qual eu já deveria ter falado aqui no blog.

E tem mais novidades: finalmente está terminado o processo de gravação do Epílogo, novo trabalho da Sobre o Fim. Estamos acertando os detalhes finais para o lançamento deste EP, gravado e mixado pelo Leonardo Kenji, no Darma Produções, em Fortaleza, e masterizado por Bill Henderson (ex-Thursday), no Azimuth Masteering, nos Estados Unidos. Enquanto ele não fica pronto, deixo o convite para nossa próxima apresentação, na nossa cidade natal, o Festival Sonora Rock, show que marca o retorno da Casa de Rock Produções, do meu amigo Quintino Neto, ao cenário musical independente cearense. Mais informações clicando na imagem abaixo.

Cartaz do Festival Sonora Rock.

6 de jan. de 2011

Bem vindo, 2011!

HQ Rafaga em exposição na 11ª FEIRA HQ, em Teresina.
2010 foi um puta ano, como eu já pude dizer num post anterior. 2011 começa sem que eu prometa nada, mas já me prometendo um bocado de coisas. Para o primeiro semestre são duas coletâneas com trabalhos meus. A primeira chama-se Histórias Fantásticas, onde tive um conto selecionado para o volume 3. O livro é organizado pela escritora Georgette Silen e será lançado pela Editora Cidadela. O conto se chama PRR: Resultado de um inquérito e é uma fantasia bem brasileira. No final do post vai um trechinho. A outra coletânea, já anunciada no blog, é a Quadrinhos em História, da Editora Multifoco, onde participo com uma história em quadrinhos em parceria com André Pinheiro, desenhista de Limoeiro do Norte. É uma história sobre a vida na favela. Engraçado que escrevi esse texto antes da invasão do Complexo do Alemão, mas a história acaba tendo muito a ver com esse episódio. Essa HQ, junto com Rafaga - Prólogo, foi também selecionada para exposição na 11ª Feira HQ, que aconteceu um outubro de 2010, em Teresina, Piauí, fato que eu ainda não tinha comentado no blog.

Várias outras coisas estão em produção, entre elas parcerias em quadrinhos com Rob Lean, Douglas Dias e Wagner Nogueira, além de um romance. Este último é minha primeira tentativa de um texto longo de ficção, uma idéia que comecei a esboçar no ano de 2007 e que retomo agora com a meta de terminar até o final deste ano. Quem sabe 2012 não começa com uma notícia do meu primeiro livro?






Capa da antologia Histórias Fantásticas - volume 3.


Trecho do conto: PRR: Resultado de um inquérito, de Zé Wellington.

Impressionado, Daniel Villa-Lobos cruzava aqueles quilômetros de floresta. Em meio à selva de pedra em que havia se transformado a Amazônia, aquele território havia se tornado o único ponto verde na foto via satélite. Mas eu não vim aqui pra contar árvores. Enquanto avançava pela estrada, Daniel lembrava como Ari tinha um jeito estranho, o tipo de cara que raramente sorria, deixando em dúvida se a piada tinha sido ruim ou se ele não tinha entendido. Daniel atravessava o jardim de imensas árvores e flores tropicais que recepcionava os visitantes da PRR Indústrias, uma das maiores empresas do país.

De súbito, o brilho dos vidros que recobriam o prédio da PRR interrompeu o verde natural: um colosso de pelo menos cem andares enraizado na mata fechada. Daniel adentrou o edifício encontrando um saguão vazio com um elevador que o convidava a deixar aquele ambiente silencioso. Antes que pudesse clicar no botão que ordenava a máquina a buscá-lo no andar térreo, a porta já se abria. Do seu interior surgiu um irritado senhor de menos de um metro de altura.

- Não sei como consegue, ele sempre me passa a perna! Sua única perna! - praguejava o pequeno ser enquanto cruzava o saguão. Por um instante Daniel pareceu notar uma estranha peculiaridade: os pés do anão eram virados para trás. Sua mente não conseguiu deixar de imaginar algum filme jodorowskiano.

Em alguns instantes Daniel chegava à cobertura do edifício, que abrigava um grande salão. À sua frente uma bela moça cantarolava baixo uma canção, enquanto digitava freneticamente em seu notebook.

- Tenho uma reunião com o seu Isac Lobato. - disse para a secretaria, que demorou um pouco até perceber a presença do rapaz e parar de cantar.

- Claro, seu Daniel! - assustou-se, tirando pequenos fones do ouvido - Ele já o aguarda. - respondeu com uma voz aveludada, que quase acariciava o cérebro do rapaz.

O contato com a moça o lembrou de Ari, que tinha um jeito estranho de olhar os outros, nunca encarando alguém por mais de dez segundos.

Uma grande porta separava Daniel do empresário Isac Lobato. Ao cruzá-la o jovem Villa-Lobos deparou-se com um belo escritório com móveis em madeira. Um vitral, com pelo menos cinco metros de altura e vista para a floresta particular da PRR, se erguia ao fundo completando o cenário. Um homem de cabelos grisalhos olhava por ele compenetradamente.

- A que devo o prazer de recebê-lo aqui, Sr. Villa-Lobos? - atirou Isac Lobato, em um tom ríspido, temperado com uma pitada de ironia.

- Acho que o senhor sabe muito bem o que vim fazer aqui, seu Isac. - salpicou Daniel.

- Por que não refresca a minha memória, Daniel... Acho que depois de tantas visitas já posso chamá-lo de Daniel, certo? - a ironia já parecia ser o ingrediente principal das palavras do empresário.

O jovem aproximou-se de Isac e lançou uma pasta sobre a mesa. As fotos que ali estavam saíram quase como ensaiadas, uma sobre a outra, criando um macabro baralho de imagens que tinham como personagem central um homem morto em um matagal. Viam-se grandes marcas no pescoço do cadáver. A cabeça estava ao lado do corpo, completamente dilacerada e coberta por uma gosma que lembrava uma mistura de saliva e sangue. Ari estava irreconhecível. Naquele momento Daniel lembrava como o amigo reagia ao toque das pessoas, como se recebesse uma descarga elétrica.

(Continua no livro Histórias Fantásticas - Volume 3)

13 de jun. de 2009

Sebastião: sangue preto - parte 6

sebastiao_lua_cheia

Leia a parte 1.

Leia a parte 2.

Leia a parte 3.

Leia a parte 4.

Leia a parte 5.

Certa madrugada, a lua cheia imponente ilustrava o céu. Eu fazia minha ronda dentro da casa-grande como vigia. Como todas as outras vezes, flagrei Jorge abandonando seu quarto para o tradicional assédio as negras na senzala. O sono de Rita também era inquieto. Vestida apenas de uma camisola longa, com detalhes bordados quase transparentes, a filha do senhor começava a me provocar da porta do quarto de Lúcio. Suas madeixas claras caíam sobre seus dois pequenos e curvilíneos seios, que vazavam as pontas escuras dos seus mamilos. Entediada com a escala no quarto do irmão mais novo, ela entrava e saia do cômodo repetitivamente, e meus brios masculinos já começavam a perturbar. Desde a captura na África eu estava privado do contato com mulheres. Em verdade, nenhuma mulher havia me interessado como Umaiame havia feito. Com Rita não era diferente, pois a sua cor branca, afinal toda aquela opressão também nos fazia um tanto preconceituosos, e seu jeito oferecido não perfilavam meu tipo de esposa àquela época.

- Sebastião, tem uma ratazana no meu quarto... Tira essa nojenta daqui! - ordenava a senhorinha.

Nada eu podia fazer mais a não ser obedecê-la. Eu sabia que o rato ali era eu, entrando direto na ratoeira do destino.

Parado dentro do quarto, assisti Rita se despindo. Mesmo com apenas dezesseis anos, seu corpo estava quase completamente formado. Podia talvez alcançar os dois extremos de sua cintura com uma mão, de tão fina que era sua silhueta. Seus movimentos eram lentos e sedutores. Minha respiração acelerava, quando ela se aproximou de mim, desatando o cordão que segurava minha calça.

- Na próxima semana vou-me embora do engenho com meu irmão. Não verei um só macho durante longos anos. Não é um desperdício? - Rita tocava-se - Também é um desperdício um negro como tu. - disse a moça dando uma volta em torno de mim, que continuava paralisado, evitando o confronto com os olhos da menina - Disseram que tu eras príncipe na África. Agora entendo toda a tua majestade... - foram as últimas palavras de Rita, antes que eu a jogasse na cama e caísse por cima dela.

Não podia mais suportar aquele joguete da senhorinha. A abstinência a que eu havia me prostrado fez com que eu desse a ela o mais puro sexo. Rita não era virgem. Na certa, algum capataz mais corajoso do que eu já tinha se aventurado nas curvas do seu corpo. Ou mais de um. Ela sem dúvida sabia o que estava fazendo ali.

Entretido nos braços de Rita, não percebi que, subitamente, seu irmão mais velho invadia o quarto. Descamisado e ofegante, Jorge tinha em seus braços uma negra desacordada e seminua coberta de sangue.

- Rita, o que fazes que não vigias Lúcio... - Jorge subitamente interrompeu sua fala ao me ver por cima de Rita - Nêgo vagabundo, como ousa... - Jorge soltou a escrava, que desabou no chão, e me arrancou da cama, me jogando no canto do quarto.

Rita parecia assustada, mas apenas observou, sem protestar em minha defesa. Lúcio agarrou a irmã pelo braço e puxou-a para fora do quarto.

- Logo papai saberá como castigá-la por tamanho pecado, mas por agora tu me ajudas a conter Lúcio... Ele está pior do que o normal... Quanto a tu, negro - voltou-se para mim - terás também tua punição.

Ao proferir essas últimas palavras, Lúcio bateu a porta do quarto de Rita com força, e o barulho que se ouviu a seguir pareceu ser da chave na fechadura. Eu estava trancafiado. Corri para a janela, que, além da porta, era a única abertura do quarto. Logo percebi que não me serviria como rota de fuga, por estar no andar de cima do casarão de Antônio Maria. De lá, no entanto, me chamou a atenção a grande lua cheia que despontava naquela noite, um prefácio do que estava por vir. Pude ver ainda mais ao olhar para o térreo.

Espreitando sob as sombras, reconheci um vulto entre vários outros, armado com um pedaço de bambu. Do lado de fora, o negro Francisco preparava a revolta que há tempos tramara. Depois que comecei a morar com os capatazes, havia perdido o contato com a senzala, mas sabia que o motim logo se realizaria. Além dos escravos, vi pessoas não tão fortes e de peles menos escuras. Eram índios. Francisco provavelmente havia feito uma aliança com os nativos, que buscavam vingança. Um massacre tramado para um dia de lua cheia.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA

Texto por Zé Wellington.

7 de jun. de 2009

Sebastião: sangue preto - parte 5

Leia a parte 1.

Leia a parte 2.

Leia a parte 3.

Leia a parte 4.

Meu serviço na casa-grande era claro: vigiar os pertences de Antônio Maria e ajudar os capatazes a capturar escravos fugitivos. Eu saia do posto de escravo, inclusive não dormindo mais na senzala, e era elevado a capataz. Minha nova casa era junto dos meus colegas de trabalho. Mas achar que aquilo traria algum conforto a minha vida era pura ilusão. Dividia quarto com o capataz que fracassara na defesa do senhor de engenho, que me olhava com desdém sempre que nos cruzávamos. Os outros capatazes não ficavam para trás e não concordavam com um negro entre mamelucos. Como se não bastasse isso, meus ex-companheiros de senzala me condenavam por eu fazer parte das caçadas aos negros fugitivos.

Restava a mim uma vida solitária, resignada aos serviços, principalmente, no interior da casa-grande. Em alguns meses já estava a par das rotinas da casa e dos familiares do meu senhor. Jorge, por exemplo, trabalhava duro com o pai no engenho. Era um garoto com os hormônios à flor da pele, como se costuma dizer, e não aceitava que teria que se tornar padre, como queria Antônio Maria. Entraria no seminário em alguns dias, o que vez ou outra o revoltava e provocava grandes discussões à mesa. Já Rita parecia aceitar melhor a vida religiosa. Tinha uma beleza provocadora, que sabia usar despudoradamente. Freqüentemente se oferecia aos capatazes, que, mesmo tentados, sabiam que poderiam estar assinando seu contrato de morte e evitavam maiores intimidades. Mesmo dentro da casa-grande, pouco sabia a respeito do filho mais novo. As histórias da senzala realmente não eram exageradas. Lúcio, como era chamado, vivia enclausurado no seu quarto. Por motivo que eu desconhecia, ele não comia a mesa com o pai e os irmãos. Sua face era um mistério, e poucas vezes eu vira a porta do seu cômodo se abrir, exceto para a entrada de seu pai ou um de seus irmãos, que se revezavam nos seus cuidados. Quaisquer outras pessoas não tinham autorização para entrar ali. Tanto em seu quarto como nos demais da casa, imagens, crucifixos e todo tipo de acessório religioso preenchiam as portas e as paredes. Ficava imaginando se Antônio Maria não teria atribuído à religião, ou a falta dela, a morte de sua esposa e de seu primogênito. Sobre essa história, inclusive, alguns boatos corriam na casa.

O primeiro a se dizer era que esse tema era proibido na casa-grande. A última escrava que havia apenas pronunciado o nome de Lúcio à mesa havia sido chicoteada no tronco durante toda uma noite. Em rodas de conversa na cozinha, escutava as escravas sussurrando a história da família. Há poucos meses o senhor de engenho e seus familiares haviam chegado de uma viagem a Portugal que havia durado mais de dez anos. Durante esse tempo, a família vivera em Lisboa, e Antônio Maria apenas esporadicamente viajava ao Brasil, para se assegurar de que tudo estava em ordem em seu engenho.

Seria uma viagem a passeio que duraria alguns meses, não fosse uma repentina doença rara que acometeria Pedro, filho mais velho de Antônio Maria, na época ainda uma criança. Tendo consciência de que na Europa disporia de melhores recursos médicos, a família inteira decidiu ficar para que Pedro se tratasse. As escravas contam que durante a doença de Pedro, sua mãe, Dona Mocinha, descobrira que estava grávida. Pedro morreria algum tempo depois, próximo da data em que seu irmão Lúcio nasceria. Ao que parece Dona Mocinha teria morrido durante o parto, em decorrência da mesma doença de Pedro e do desgosto de perder seu primeiro filho, o que teria mexido profundamente com Antônio Maria. Mesmo com as duas dolorosas mortes, o senhor de engenho e os três filhos restantes continuaram no Velho Continente até Lúcio completar dez anos.

A volta definitiva de Antônio Maria ao Brasil também rendia histórias, no mínimo, exóticas. Lúcio havia sido trazido até o engenho dentro de uma de carruagem sem janelas, e ninguém viu sua transposição para o quarto em que estava. Às vezes me questionava se o filho mais novo do senhor do engenho realmente existia, ou ainda se o meu senhor apenas havia depositado a culpa das duas perdas que tivera no filho caçula, aprisionando-o como castigo. Isso eu saberia em breve.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA.

Texto por Zé Wellington.

31 de mai. de 2009

Sebastião: sangue preto - parte 4

sebastiao_indio Leia a parte 1.

Leia a parte 2.

Leia a parte 3.

Antes do nascer do sol, Antonio Maria, dez negros e cinco capatazes já estavam embrenhados na mata. A tribo que visitaríamos era a dos fulniôs. Depois de uma caminhada de mais de uma hora, estávamos em território indígena. De longe avistamos às ocas, feitas de palha pintada de urucum rubro e jenipapo negro, num posicionamento que lembrava bastante a minha tribo. A área gritava silêncio, e nenhum movimento nativo parecia próximo. Concluímos que ainda dormiam. A um gesto de Antonio Maria, um dos capatazes avançou rapidamente sobre as ocas, derramando um líquido sobre elas. Logo, ele foi acompanhado pelos outros capatazes. Os outros negros acompanharam o movimento, e começaram a encharcar as ocas com o que seria algum tipo de combustível. Em princípio, fiquei parado. Não queria fazer aquilo. Era como eu tivera perdido tudo. Via ali a minha própria aldeia sendo incendiada. Fiquei apenas observando, quando um capataz roçou uma faca nas minhas costas:

- Vamo, nêgo, queima tudo.

Em alguns minutos toda a aldeia estava banhada em combustível. Antonio Maria ordenou então a um dos capatazes que ateasse fogo nas ocas. O comandado logo o fez, mas quando a primeira oca iniciou a queimada, o capataz foi atingido com uma flecha no meio do peito. O tiro vinha do matagal, do lado posterior ao da nossa entrada. Da mesma direção, uma enxurrada de índios brotou de dentro da selva numa gritaria infernal. Certamente eles haviam notado nossa aproximação bem antes de chegarmos à tribo e já haviam abandonados suas ocas aguardando nossa chegada.

Armados com arcos e machados de pedra primitivos, os índios corriam em nossa direção. Os capatazes tinham facas e nós tínhamos pedaços de pau nas mãos. Foi um combate sanguinolento, e, apesar de estarmos em desvantagem numérica, nós éramos mais fortes e mais habilidosos. Derrubava facilmente dois índios com uma golpe só. Aquilo me fazia sentir mal. Estava lutando por minha vida, mas ao mesmo tempo defendendo o opressor. No meio de tudo, senti a falta de Francisco e alguns dos negros que estavam conosco. Cheguei a cogitar que haviam escapado no meio da confusão. Não demorou a que restassem poucos índios de pé. Muitos deles haviam se embrenhado em fuga no matagal. Francisco vinha de dentro da relva, alegando que havia perseguido um grupo, mas que os fugitivos haviam se dispersado próximo a um açude.

De longe, Antonio Maria apenas observava protegido por um capataz à sua frente e uma grande árvore nas suas costas. Mas de cima da árvore, um indígena preparava-se para um bote sobre meu senhor. Nunca entendi por que me importei com aquilo e corri em direção a Antônio Maria. O índio pulou e agarrou-se ao senhorio. Antes que o oponente pudesse enfiar uma machadinha na garganta de Antônio Maria, pulei sobre ele enfiando o pedaço de pau que tinha em minhas mãos no meio do seu peito. O oponente caiu desfalecido, levando também o senhor do engenho ao chão. Antonio Maria respirava rápido, recuperando-se do susto. Jogou o corpo do índio ensangüentado de lado e deu a mão para que eu pudesse levantá-lo. Ele olhou fixo em meus olhos enquanto o erguia para depois virar-se para o capataz que deveria tê-lo protegido.

- Inútil, quase que venho a óbito! - disse enquanto se limpava, para depois se voltar a mim novamente - Quanto a tu, que a graça divina te proteja no céu, por que em terra, a partir de agora, és um protegido de Antônio Maria.

Um tipo esquisito de satisfação tomou conta de mim naquele momento. Francisco me olhava mais uma vez desconfiado.

O confronto havia terminado. Enquanto o sol nascia, caminhávamos para o engenho. Ao chegarmos, os negros foram encaminhados para a moenda, para seus trabalhos rotineiros, com exceção de mim. Antonio Maria chamara-me até a sala da casa-grande. Quando entrei, dei de cara com a grandiosidade que era ser um senhor de engenho na época. A pomposa sala de estar do meu senhor tinha um piso de madeira lustrado, que era quase como andar sobre espelhos. Móveis grandiosos e um sofá acolchoado com tecido em veludo vermelho impunham-se no centro. Enfeites religiosos é que não faltavam: eram crucifixos e imagens para todos os gostos, de ouro, prata, mármore, pedra e madeira. Uma escrava lavava os pés de Antonio Maria, que estava sentado ao sofá conversando com um capataz.

- És um valoroso soldado! - disse quando notou minha aproximação - E é de guerreiros dessa majestia que preciso para que protejam minha prole. De agora em diante serás segurança de minhas propriedades. Que achas?

- O que meu senhor quiser - não poderia ser outra minha resposta.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA.

Texto por Zé Wellington.

24 de mai. de 2009

Sebastião: sangue preto - parte 3

engenho_sebastiao

Leia a parte 1.

Leia a parte 2.

Certa época, o engenho começou a passar por alguns furtos. Vários escravos foram castigados, até que se descobrisse que os assaltos eram obras de índios da região. Isso irritou bastante nosso senhor, que na fundação do seu engenho fizera vários acordos com indígenas para que não tivesse tais incômodos.

- Querem guerra, que se engasguem com guerra! - bradava Antonio Maria, prometendo retaliação.

Numa noite, Antonio Maria chamou Raimundo, nome do velho sábio que eu havia conhecido na minha chegada à senzala, e o imbuiu da tarefa de escolher os dez escravos mais aptos para um confronto com os larápios. Eu havia sido escolhido, junto com Francisco, o jovem que dividiu as correntes comigo, e Raimundo, o velho ancião. Na madrugada seguinte invadiríamos a tribo para tomar as devidas satisfações.

Como num costume da tribo de meus colegas de guerra, iniciou-se na senzala naquela noite um ritual de preparação para o combate do dia seguinte. Os escravos começaram a se organizar numa roda no meio do terreiro. A percussão da capoeira estava lá, mas muito mais compassada. No centro, Raimundo, sentado num tamborete de madeira, fumando um cachimbo de cheiro forte. Subitamente a percussão começou a ganhar velocidade, e as batidas ficaram mais intensas, quase ditando o ritmo do coração dos presentes. As mulheres mais velhas cantavam em voz alta, algumas chorando, versos que eu não conseguia traduzir. Elas se dirigiam a Raimundo. Nunca havia visto nada parecido na minha tribo. Tínhamos nossos costumes que evocavam o sobrenatural, mas nada semelhante. O clima ia ficando denso, e um aperto inexplicável tomava conta do meu peito. Estava com medo. Não demorou a que o velho Raimundo tremesse dos pés a cabeça. Seus olhos se reviravam e dos cantos da sua boca uma espuma esbranquiçada brotava. Francisco segurava seus ombros, para que o velho não se desequilibrasse. Alguns minutos depois, Raimundo estava imóvel.

- Unêgoquissiprepariproquevem... - Raimundo falava rápido, de um jeito quase incompreensível, de olhos revirados como se estivesse possuído - vaibatê nu brancu, vai? U brancu é raçarruim.... mas dá de comer... Baiani vailánumvai? - e caía numa risada amedrontadora.

- Eu to aqui, meu Preto Velho, pra te escutar - disse Francisco, ao ver seu nome africano sendo pronunciado em meio à tempestade de palavras.

- Baiani vaichegarláevaifazer... numvai Baiani? Agora sioutronumvai... Baiani deixa... deixa Baiani...

- Baiani deixa, Preto Velho... - não sei se Francisco estava entendendo o que o incorporado Raimundo dizia, mas ele concordava serenamente, já de joelhos a sua frente.

- Tem mais guerrêro aqui... Cudjobá taqui? - disse Raimundo, balançando a cabeça de um lado a outro como se estivesse buscando alguma coisa.

Raimundo havia proferido meu nome africano. No início não sabia se respondia aquele chamado. Ainda tentava digerir aquela situação, pensando se isso não ofendia minhas próprias crenças. Francisco já havia me falado, certa vez, sobre esse tipo de possessão por espíritos antigos, sobre as orientações que eles recebiam deles. Talvez o homem branco ignorasse o que não conhecia. Negros e índios sempre foram tomados por ignorantes dentro de suas crenças, crenças essas que explicavam coisas que os brancos certamente não entendem até hoje. Mesmo depois de muitos estudos, vejo que nós chegamos bem mais perto de Deus com nossa cultura de ignorantes do que o branco, que preferiu ser temente a ele e prostrar-se na sua “bendita ignorância”. Não seria, então, o branco o ignorante?

- Cudjobá numvem? Tutemtudo só num tem medo, Cudjobá... vemperto.

Acabei por me achegar em Raimundo, que, ao notar minha aproximação, começou novamente a ter espasmos, ainda mais fortes que os do início da sessão.

- Cudjobá vailonge... Nummorremascorrequemorrertuquer... Branquin mal! Branquin mal! - Raimundo começava a gritar, enquanto Francisco e duas negras o seguravam. O velho começou a repetir a mesma palavra, fácil de distinguir - Sanguisanguisanguisanguisanguisangui...

Se antes aquilo tudo já havia mexido com meus brios, agora eu suava frio e respirava com dificuldade. Eu tinha ouvido “sangue”? Não entendia o que ele queria dizer com aquilo. Foi quando Raimundo caiu desmaiado aos meus pés. Enquanto tentava acordar o ancião, Francisco me olhou com uma expressão de desconfiança.

Não preguei os olhos por um minuto naquela noite. Algo estava terrivelmente errado. Rezei para todas as minhas divindades até adormecer. Meu sono foi povoado por uma série de pesadelos. Via Umaiame correndo, fugindo de um grande lobo. Ela chorava e gritava meu nome. De algum lugar eu tentava estirar meus braços para alcançá-la, mas não conseguia, por que enquanto ela corria do lobo ela também acabava por se afastar de mim mesmo. O sonho cortava subitamente para a senzala, onde Raimundo chorava, gritando possuído. Seus olhos vertiam um sangue denso e ele perguntava a mim se eu queria morrer. Acordei com o barulho dos outros escravos preparando-se para a jornada.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA.

Texto por Zé Wellington.

17 de mai. de 2009

Sebastião: Sangue preto - parte 2

capoeira_sebastiao

Leia a parte 1.

Depois de um ano cuidando das plantações de cana, começava a me acostumar com meu novo modo de vida. Num dia trabalhava por volta de doze horas e com sorte me alimentava duas vezes. Já falava um português compreensível, mas com as particularidades criadas pelos negros. Não via mais do que a senzala e as plantações. No caminho entre esses dois pontos, contemplava de longe o casarão do meu senhor. Era a típica casa-grande dos coronéis da época, com uma estrutura pomposa e um alpendre que rodeava toda a propriedade. Tinha um amarelo morto como cor predominante e uma grande porta de madeira na frente, talhada com motivos religiosos. O senhor Antonio Maria tinha vários capatazes a seu dispor, que rodeavam a propriedade como seguranças pessoais da família.

Sobre os familiares do meu senhor, conhecia pouco. As poucas informações que tínhamos eram trazidas por quatro negras que cuidavam da casa-grande durante o dia. Antonio Maria era viúvo e tivera quatro filhos. O filho mais velho morrera em uma viagem a Portugal quando tinha apenas dez anos de idade, de doença desconhecida, que também matara a mãe, dona Mocinha de Albuquerque Coelho. O segundo filho era Jorge, jovem que ajudava o pai na administração do engenho e presença constante na senzala, onde vez ou outra raptava escravas ao cair do sol. Rita era a terceira filha, uma bela moça no auge de seus dezesseis anos. Não se sabia muito sobre o quarto filho, que, segundo as amas, vivia enclausurado num quarto por extremos cuidados que o pai tinha para com ele. Ao que parecia, era de intenção de Antonio Maria dar orientação religiosa aos três filhos, para que exercessem carreira dentro da Igreja, fato um tanto incomum na época, quando os grandes barões da cana-de-açúcar casavam seus filhos por interesses comerciais. As escravas que trabalhavam na casa diziam que após a morte da esposa e do filho, o senhor Antônio Maria agarrou-se veementemente às suas inclinações católicas.

A religião era algo realmente forte dentro do engenho. Fazia exatamente um ano que eu havia sido trazido à propriedade, quando Antonio Maria mandou batizar todos os negros do arraial. Mesmo sendo tal ato uma prática comum na colonização católica européia, a princípio o padre da capela local achou que aquilo seria uma heresia, por acreditar que os negros eram seres renunciados por Deus. Nada que uma pomposa doação para a paróquia não resolvesse. Um a um, todos os negros foram recebidos pelo padre para a efusão. Um adicional dessa celebração seria ganharmos novos nomes, inspirados nos mártires da Igreja Católica.

- Como é teu nome, escravo? - retrucou o padre, me olhando seriamente.

- I Cudjobá Kamuká. - respondi prontamente usando ainda o sotaque forte do meu idioma.

- Santo Pai! Parece uma sinfonia proferida por Satanás! De agora em diante te chamarás Sebastião! - bradou o santo padre, jogando violentamente uma caneca de água sobre minha cabeça.

Assim eu ganhava um novo nome, que por decreto de nosso senhor deveria ser utilizado imediatamente. Nosso temor pelos castigos físicos impostos no engenho nos fez rapidamente acatar nossas novas identificações.

Ganhar um novo nome teve suas vantagens. Nossa conversão em católicos fazia nosso senhor, vez ou outra, nos olhar com mais benevolência. Não que isso significasse menores punições. O peso do chicote ainda era o mesmo para aqueles que saíssem da linha. O maior benefício talvez tenha sido nos proporcionar certos momentos de lazer durante feriados religiosos. Em “dias de santo”, nossa jornada terminava mais cedo, e apesar de ainda aprisionados na senzala, éramos liberados das correntes. Recebíamos aguardente e arroz cozido, ingredientes para uma típica comemoração africana.

Em uma dessas festas entrei em contato com o modo de defesa negro. Não era exatamente uma arte marcial sofisticada, como eu viria a conhecer tempos depois nos meus estudos sobre a cultura oriental, mas uma dança rápida, executada no meio de uma roda animada com palmas e cânticos que misturavam palavras em português e ladainhas africanas. Talvez não fosse propriamente uma dança o que acontecia no centro daquela roda. Os escravos lançavam chutes afiados uns nos outros, dois por vez. Na maioria das vezes os chutes eram esquivados pelo oponente, porém vez ou outra eles acertavam-se. Mas isso não era motivo de desavença entre aqueles dançarinos. No fim de sua vez, eles abraçavam-se rindo e dividiam um copo de aguardente, dando espaço a mais dois oponentes. A mistura de dança e luta, alguns séculos depois, ganharia algum padrão e viria a ser chamada de “capoeira”. Apesar de toda essa balbúrdia, os negros eram espertos o suficiente para evitar que isso chamasse a atenção do nosso senhor. Uma escrava fazia vigília na porta da senzala para avisar de qualquer aproximação suspeita. Sabíamos que a gritaria em “línguas pagãs” poderia perturbar a imaginação fértil dos católicos, na época à sombra da Inquisição. Em pouco tempo eu também já era um exímio lutador daquele estilo, o que logo me daria certos privilégios.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA.

Leia a parte 3.

Texto por Zé Wellington.